Ela só sabia que devia fugir. Inexplicavelmente tinha que escapar, abrir uma brecha no espaço e passar por ela para um outro plano. Por medo e mais ainda por insegurança, não se sentia capaz ter qualquer coisa. Sempre havia desprezado tudo, nunca fora capaz de ter nada por muito tempo. Quando criança, desmontava todos os brinquedos e depois os jogava fora, cansada de tudo aquilo. Não tinha explicações, apenas sentia que não podia possuir nada, nada, muitos menos brinquedos caros.
Visualizava um brinquedo, uma boneca de pano que sua avó lhe fez, toda colorida, alegre, que um dia passando por uma ponte em uma viagem que fizera com seus pais até um país vizinho do seu. Isso. Era uma ponte que ligava, ou melhor, separava países, resolveu em um soluço abandonar a boneca. Uma certeza adulta que só criança tem de deixar para trás aquele pedaço de alegria porque assim devia ser, traçado de um rio. Num relance olhou para todos os lados e jogou a boneca no rio imenso, obra do destino de águas que não pensam somente passam e mudam o rumo, porque assim deve ser, o rumo de um rio que ainda não foi trançado por ninguém. Que cena bela essa da sua vida inesquecível. Depois disso foi tomada por uma vontade de ser atriz e achava que levava jeito para cenas dramáticas. Os anéis de doces, os pedacinhos de brinquedos queridos, eram deixados em lugares, atirados em rios, esquecidos em sombras de árvores. Com o tempo percebeu que não era desapego abandoná-los, e lembrava sempre da boneca de pano, essa que a fez perceber, naquele dia, que o desejo de jogar o que era seu, na verdade traduzia em rascunho uma vontade de deixar um pedaço dela em cada lugar, como se para ampliar tua existência. Ela abandonava-se para pertencer ao mundo, e o mundo a ela.
*primeiro parágrafo assinado por: Do lado de lá
" Uma certeza adulta que só criança tem..."
ResponderExcluirbelíssima construção, mais ainda o propósito de pertencer a cada pedaço de mundo.