terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Varais

Ela acabava de pendurar a última peça. Vai chover menina, avisou o pai. Nem intera uma hora a chuva vem e lava o seu trabalho. Guarda na varanda. Pendura no coberto. Assim refez o caminho que acabou esfregoso na ripa de pau do tanque de casa. O pau estava branco de tanto sabão. E as mãos grossas de tanto esfregar. Sem demora recomeçou despendurando, obedeciosa. Quando sentiu o primeiro pingo, sorriu esperançosa. Talvez as pré-visões da noite de natal feitas por seu pai também caíssem com um céu qualquer, num dia, de uma tarde nuvosa.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Porque nem tudo é sexo, né?

..." Até que sua boca se encheu de saliva. O vento empurrou a porta do quarto. A tranca rangeu um som lindo. Ela levantou-se e ficou mexendo com a porta, pra lá e pra cá. "Que som lindo!" Havia conseguido compor uma música: letra: Brumário; melodia: inheque, inheque, inheque, inhequeque...

O vento insistiu. E começou uma resistência entre a porta e a força que ela fazia com a suas mãos. Isso alterou o som de um jeito que não sei explicar. Parecia constante a sensação de força que resistia a um movimento seu. O que cansava o seu corpo, que agora não sentia. Por isso era bom o cansaço, era um sentimento que retirava os outros do seu corpo. Então por que esta sensação negativa em relação à resistência que o mundo fazia sempre em que ela estava pertencendo. Se no final era o cansaço que vinha, amplidão sem som. Paz sem vida. Completo. Parecia morte, mas era bom. Parou com a música e deitou-se. Acordou um século depois no seu interno tempo de ontem.

Uma joaninha saiu de dentro de seus olhos. Saiu fazendo cosquinhas, descendo pela sua face, passando pelo seu pescoço, até chegar à sua barriga, ela a seguiu com o olhar, rindo do movimento frenético de suas patinhas. A joaninha alojou-se no seu umbigo e ali ficou, adormecida. A porta fizera-se de pausa, Brumário esfacelou-se no ar, a música se perdeu. O tempo movia-se viscosamente, grudando-se nas gentes, marcando-lhes a face. Tinha sono, mas era incapaz de dormir, seu corpo soluçava algum recomeço de vida.

Era fumaça no seu pensamento e se espalhava naquilo que conhecia realidade. Esquecendo nela uma herança do nada. Por isso a música sempre voltava como lembrança. Os parques as praças as joaninhas que andavam por ela. E no meio tom aquela música que perseguia. E seu corpo, quando voltou para aquele instante não era seu, não podia ser. Ocorria que uma moradora vermelha com pontos pretos tinha tomado a posse e bem ali no umbigo. Sua ligação com o mundo devia passar por lá. E a esperança morria ali todo dia. Mas a joaninha não se dava conta. Ela pensou avisá-la, desistiu. Gostava da cócega que o jeito de andar da joaninha lhe fazia. Lembrou-se do vizinho o homem-galinha. A sua mão virou seu rosto e começou a fazer um carinho como se não pertencesse ao mesmo corpo. E ouviu: ‘amor, descanse’.

Nunca ouvira um trovão, mas de repente o amor se instalou nela, abrupto, pum! Seco, sólido e poroso. Amou a joaninha, como todo amor mortal, com sede de infinitos. Amou até o fim, com amor de aumentação. Como amou! Sabia quantas pintinhas tinha, quantas patinhas, sabia do movimento das anteninhas (joaninha tem anteninha, dani?). Mas houve um dia, sempre há, houve um dia que ela quis beijar a joaninha, ah! Pobre, abraçou pobrezinha e quando desabraçou ... ah! Não quero falar.

Nem eu. Somente ouvir o som do meu desejo nascer saudade. Porque tudo acabaria naquele momento. Ou no anterior quanto desejei que seria para sempre. E tentei absorver e dar sentido a forma como a joaninha andava em mim. Pobre joaninha começou a existir só para satisfazer meu desejo, cruel eu fui. E ao mesmo tempo por que amar logo a joaninha, tão tranqüila, que viveria tão bem a sua vida até sempre que fosse. E eu um ser sem sentido amando uma joaninha. E rompendo o seu corpo. Estilhaçando a sua couraça de proteção que era pura beleza. Num abraço que (não) deveria ter fim. Naquele 'fim' instante estava tudo acabado.

*você. e acho que eu. ou o eu que arrancou de mim.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

A mãe trança os cabelos. A menina caminhava com a cabeça pesada de trançar. Lembra da igreja que passava logo de manhã. Antes das sete para o caminho da escola. Sobre seus pés tirinhas de couro a roçar. Corpo miúdo ainda com tranças grandes, que pesavam, com uma certa dor ardida da lembrança do descabelar. Demora o caminho na lembrança. Era de café com pão, feita a despedida. De tantos passos a chegada, sem música e muita encruzilhada. Os cabelos nas enxurradas de ventos que não os tiravam do lugar. Tiritavam os fios. É uma arte trançar. Alegre não era, nem triste estivera, nem lembranças da demora, por hora só sabe que agora parece a trança essência dela. Não vai chorar? E não tem dança. Tem nariz de menina e queixo enrugado de um choro apertado de medo de apanhar. E de andar sozinha nas ruas que pareciam grandes demais. Com a boca tapada das nove ceras de um altar. Parece que a cera é da menina. Mas não é. As velas que queimam as promessas derretem a ceras e colocam tudo no lugar. Pernas pequenas que refazem caminhos nem tão longos assim. As sensações de mim. Puxa para cá, puxa pra lá. E a trança se faz no balanço de um calcanhar. Que dor dá essa brincadeira de trançar. Cabelos presos na destreza de mãos a entrelaçar pedaços de nós. Como dói meu couro cabeludo de pensar. Escurece. E, os pés, os cabelos, os novelos, os fios, as roupas coloridas, as grades, as janelas, a calçada, as minhas mãos, as brincadeiras, os joelhos ralados, os queixos perfurados, a língua beijada, as pernas amputadas, o sexo empalhado, o lápis não usado, o caderno sujado, remontam meu jeito de andar.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

todas as mulheres gostam de apanhar. todas não, só as normais. nelson rodrigues

depois de tanto ativismo:
números;
descaso;
e mulheres, como eu,
(nada) normais!

http://benandanti1.wordpress.com/

medores

Teve um tempo o medo. O medo teve o tempo. E o tempo se fazia menor, por medo. E o medo teria de ser maior, por menores que fossem meus medos. Era quase um suspense para ligar o que queria dizer, então não, pra não dizer o medo. Maior quando não dito. Somente tido, ele a mim. Por dizer, menor, explícito. O medo era dono de mim. Sem ele não existia, por medo de existir. Mas tudo isso em mistério. Porque senão seria (des)medo. Dez (medos) listei, forte, com a caneta. Hoje não senti medo. Pois nunca duvidei do medo. Desisto, (des)existo. Não era erro, era um começo que nunca começava. Mas a demora sabia. Comece medo porque nunca vai ter fim. E a demora ficou dona do medo. E neste mandava, implacável. Quando começar nunca mais terá medo. Agora toda vez que sinto lembro-me do primeiro sentimento: ‘o medo’. Outros vieram a comer na mesma mesa. Uns dominados, outros dominadores. O certo é que o medo me guia. Refere-se a mim. Então, agradeço ao medo que me pariu. Agradeço ao medo por fazeres (a mim) sua senhora, amém.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Pau D'Alho

Eu me lembro do terreiro, das carriolas abarrotadas de galinhas mortas.

Lembra mãe?

(parece que eu escutei a fala da vovó na sua voz

'filha você lembra de cada coisa.'

nós quatro temos a mesma voz:

Maria, Daniela, Carolina, Juliana)

Era alguma praga daquelas que passam e matam.

Ou daquelas que precisamos matar antes que nos mate.

dos remédios aos pingos no bebedouro delas.

E das valas. E do cuidado para o mal não se alastrar.

Lembro que vocês doavam leite, pai e mãe.

E que naquele ano, da praga, alguém passou fome.

Lembro do flamboiã,

Das cadeiras, dos livros,

Daquela sombra fresquinha

E de estudar histórias com você. Mãe, lembra?

Eu tinha medo de não entender.

Lembro do mutirão das uvas. Nossa como é delicado plantar uvas.

E do tempo dos alhos, a casa ficou em frangalhos

E a sala virou santuário de envasar nosso trabalho,

Bugalhos, alhos, atalhos

tudo misturado ao cheiro forte do lugar

Tudo para eu estudar,

E ir embora de casa.

e voltar no final do ano

com saudades de Pau D'alho.

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Capítulo, 12

Não, eu não queria falar, nem muito menos esquecer. Escrever, então, pura automação. Insatisfação. E, no entanto há tempos não olho para dentro de mim. E quem quer saber? Quanta masturbação faz para viver. Viver é pouco para quem quer saber. O melhor é não saber. Porque irá morrer. Viver é pouco para quem quer saber ? Um susto para quem não quer. Um surto para um cego-surdo que ouve e vê. O melhor é não saber. Irá morrer. Um dia, uma febre, uma noite, um enjôo, uma manhã, um desmaio, um banheiro, uma friagem, um sei lá o quê., Vai acabar por doer. Que vida besta que nos põe a morrer. Morre-se para viver. Converte-se para não saber. Eu. Eu tive medo de dizer. Eu ouço música. Eu leio poesia. Eu reclamo da vida. Eu faço sexo. Eu deito no divã. Eu me sinto incomodada deitada lá, acho a posição desconfortável. Eu bebo. Eu como. Eu até imploro por mais vida. Eu choro a minha, a tua, a ferida. Eu adoro clichês. Eu tenho ferida, e quem quer saber? Meu corpo doe(dói). Esta noite mesmo acordei com dores. Será que foi mal-olhado, mal-desejado, mal-falado, mal-fodido? Talvez. As dores existem. E são lembranças. E são reais. E são na carne. Ontem na oficina que conserta coisas esperei por quatro horas. E por esperar você me abraçou por três. Beijou. E tocou meus seios por uma. E as horas me olharam despenteadas. E mal ditas encararam o tempo e pediram por mais vida.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

A mão áspera passava essa leitura, sobre a minha pele fina, com voz rouca, silábica. Lábios massageavam as linhas. Aviões no lugar das palavras. E línguas escrevem nos seus pelos frágeis. Talvez descrevesse um instante qualquer só para parecer poesia. Mas a sarjeta que quero traduzir não salta de mim em versos afins com o mundo. Sim, foi porque um silêncio da amanhã de ontem me matou docemente. As águas cairam em mim e a lama me soterrou, agora presa no limbo da minhas vontades. Que as lágrimas se dissolvam em palavras vendáveis. Presas em capa dura e preta. E que a felicidade se ocupe do seu prestável lugar. Pois a infelicidade é certa num mundo de gente que quer ser feliz. Pense? Uma precisa da outra para existir. Ninguém se ocupa do nada. O atraso só olha pra frente. E a gente? E o adiante vem (de traz.) E ainda assim Rilke continua alemão. Adianto. E no meio, das frases, palavras de alguém a soltar aviões no céu da minha boca.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Capítulo, 13

Penteou os cabelos do lado esquerdo com gel para ficar com um aspecto molhado. Com esperança. Procurou no armário aquela camisa que tanto lhe dava segurança. Não achou de pronto. Não iria perguntar onde estava não convinha. Optou pela cor azul calcinha. Tantos momentos bonitos passados na cabeça vestindo aquele uniforme de recrear. E ela sempre dizia que ficava mais jovem de azul. Vestiu, olhou, avaliou. Colocou por dentro da calça. Tudo bem, pensou-se. Aprovou. Naquele dia adiantou os relógios para sair sem que ela o visse. Embora fosse dela a força arrancada daquele algo estranho na rotina. Algo desprendido do óbvio. E tão óbvio. Não passou. Desapercebeu. Todos comentaram seu aspecto diferenciado naquele dia. Talvez não tivesse coragem. Não queria ter coragem. Nas cenas do intervalo reproduzia frases absolutas que definiam a não-ação já calculada há meses para este dia. Mas seus pensamentos ainda procuravam por respostas aos atos. Indagava no comum dos acontecimentos rotineiros suas inseguranças. Pura loucura. Pensou nela adormecida. Desavisada das escolhas dele. Isso vez doer. Descansou essa idéia. Olhou o relógio: duas horas para o encontro. Gelou a espinha. Desperançou-se.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

peças íntimas, cenas públicas

-


Ela acabava de escolher a última peça, lilás, sem renda, e com um tecido moderno, que absorve o odor.

- A senhora vai ver mais alguma coisa? Um sutiã, um baby doll, quem sabe uma peça mais sensual. Para ficar bela para ele.

- Minha mãe não usa sutiã. Ela faz parte daquele grupo que queimou os sutiãs. Já ouviu dizer, as feministas?

Num instante o Bruno se apropriou da conversa. E continuou num fôlego só.

- Então, eu participo das reuniões do coletivo junto com a minha mãe. Patriarcado? As questões de gênero. Sabe? Ela não usa, nem adianta.

A mãe que escorreu por um corredor a selecionar uma peça íntima para prova, se fez de surda. E se desfez no meio do predominante vermelho, cor-de-rosa, e marrom. Acompanhando meio que distraída, decidindo com a atendente, qual seria a peça a ser provada.

Ele continuou ao som dos: aham, hum, ahh!, Da mocinha da loja. E algumas vezes com o balé de sim, que esta fazia com a cabeça.

- Então, eu sou o único menino da quarta série que tem pais separados. E o único que a mãe não usa sutiã. Meus amigos acharam isso muito engraçado quando contei. Ah! Deixa eu te falar: nós lançaremos um livro, uma coletânea de textos no fim do ano. Quer ler um trecho da minha redação?

E prontamente, certo do sim, foi até o provador onde a mãe estava e pegou da bolsa o rascunho num papel todo amassado.

E começou a leitura:

- "Um menino chamado Pedro estava em seu sofá entediado sem nada para fazer, tinha uma vida dura, seus pais eram separados e sempre..."

No meio da leitura a mãe perguntou por um número maior da prova. Com a negativa começou a se recompor. Voltou até o balcão e propôs:

- Vocês têm algo entre a opção mulher fatal e/ou à linha teen para meninas, e/ou a cor de pele para senhoras?

A moça estranhando a pergunta e notando a irritação da cliente respondeu:

- Na loja não temos nada.

Seca,

Pagou a conta e saiu:

Calada;

E irritada.

O filho na saída perguntou:

- Mas mãe o que seria ‘algo entre’?

- Ah, uma opção “mulher normal”. Algo que nem aperte muito, mas também que não afrouxe displicentemente. Que me dê conforto, amor.

- Nossa. Nunca pensei nisso. Seria um grande negócio para as empresas que fabricam esse tipo de roupa: lingerie para feministas!

A caminhada durou mais alguns passos até chegar o ponto de ônibus. Internamente ela sorriu ‘amarelo’. E seu queixo enrugou como de costume.

- Você está triste, mãe?

- Só cansada.

domingo, 6 de dezembro de 2009

Qualidade de secura. Hoje nasceu refletida. Acordou assim branca. Sentiu um aroma que vinha do seu lado esquerdo. Era novo esse cheiro. Parecia dela, mas não conhecia. Sua pele parecia impregnada de mar. Colou uma presilha no cabelo. Prescindia de cor. No escuro do seu corte. O vermelho não se apruma. Dores que evita. Vida que não vinha. E o cheiro aumentava. Era fresco como o começo do ano. Era o esquecido dos dias. Do passado que na sua cabeça ardia sem existir. Do tempo atrasado que ela sentia, mas não sabia, convinha. Ou do uso daquilo que não te pertence, das roupas que empresta e usa com a lembrança do outro. Era tão insegura. Segura do que não era. Lamentava aquela presença sempre que se ausentava. Porque assim podia se ver. E parece tão vazio o lugar daqui. Tão sem sombras de talvez. Tão certo. Tão feito de obviedades. Tão desprovido de amor. Tão claro. Uma mistura de verdades deslocadas. E invenções próximas do que sou.



("olhos que chamam")

Você é injusto, sujo,

Mentiroso, sua pele é podre.

E, é maltido entre os santos da minha vida,

Por que reprime esperanças. ?

Que salta do nada viscoso da lembrança

Embalada por suas mãos

Que nem sei o que querem,

(querem estar vazias.)

E fico lesa

Te odeio,

Porque pensa poder saber de mim,

E te esqueço com apego

De um corpo que nem sei,

:canteiro:

De obras de um não-amor

Que você sempre soube, justo.

E tem mais: me cansa com a sua beleza.

me enoja com seus dedos imundos tocando minha pele lavada.

você fede, não toma banho

dorme com a roupa que veio da rua,

me traz flores murchas,

não cuida de mim

afetos frios

fingidos de doce

tudo tão poeticamente feito,

tudo para me enganar,

tudo tão fantasia...

e eu nas tuas asas de cera.

foge;

se esconde detrás do sofá,

você bebe,

você me prende no seu jeito de deixar tudo solto,

não sente prazer,

me usa,

se dá e não se entrega,

está morrendo de vida,

tem outras mulheres,

me faz sentir só mais uma...

me destrata e não me bate,

não me xinga e me agride,

você se faz de besta,

me corrói,

quer meu corpo, só

chora

e não soluça, embora.

vou embora! Ponto.



Fim

(esta tem parceria musical!, felipe)

sábado, 5 de dezembro de 2009

Sonha, sonho


"Ele organizava os papéis cuidadosamente como se fossem tesouros. Revirava e corrigia quando necessário, seus movimentos eram suaves, parecia dança, uma dança de gestos comuns. O som saía do toque nos objetos que o cercavam: os papéis, a mesa, as canetas, o telefone, a cadeira giratória, a impressora. E o silêncio vinha das palavras impressas, intangíveis."

De repente despertou. Desnasceu pra vida. Havia adormecido no sofá, olhou o chão da sala e viu as imagens de um caleidoscópio, as sombras do sol refletidas por sua cortina colorida. As cores giravam e transformavam as formas com o vento. Sonhei com ele, com o músico.


Foi até o quarto. Em suas mãos o rascunho da carta que havia enviado meses atrás:

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

te digo sem por quê.

(picasso)

me disse num verso simples
apartado de um todo: poesia.
ampliou-me na sua síntese
face alheia
não decifrou, nem devorei
descristalizou-me
(tuas palavras são punhais a desossar minha carne)
conjugou-me verbos sem tempo
e sem língua
escreveu frases inteiras dentro de mim:

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Capítulo, anti-penúltimo

Não. Não, não sou nada disso. Pensou que pudesse, ao pensar entristecida, colocar as coisas no lugar. Se uma impressão equivocada, por ele feita, não tivesse tanta importância. Se o coração não crescesse de sentidos com uma ideia de homem que ele fazia nascer, ou talvez, se uma crença naquilo que ele insistia em ver, transformasse sua história. Não perderia tempo escrevendo isso. A sua essência era entregue como quem corta a carne e vê o sangue jorrar, sem som. Então calou uma vontade límpida de colocar tudo no lugar. E falou o que pensava sobre o que ele pensava. Mas agora o pensamento lhe importava mais do que tudo, menos que nada. E organizar esse pensamento em pontos de luz que enquadrasse uma fina vontade de somente existir, e isso é ele. Essa parte aqui., não sei dizer o que senti, não disse o que senti com clareza. Porque não sei. Ou melhor, o que ficou em mim do que pude sentir dele. Não, não falei. Porque quando disse não fui ouvida. Fui aspergida. Encabulada na sua falta. O sobressalto de laminas cortante de outros que existem, e são homenageados por isso, é muito mais importante. E a leitura é feita de tantos outros que é impossível existir num mundo que preza tanto a existência em varais alados de sangue de outras ideias. Não, não quero entender, nem traduzir. Quero o secreto de cada um, no óbvio do sentimento marginal, que descaminha as minhas sobras. Sentiu no final um jeito desconsertado de se perceber, dele se auto-perceber, lutou junto dele, para que ele pudesse no limite não se aventurar a nada, a nenhuma sensação que pudesse constranger. Coisas que não são reais, que são impressões de mim (eu) refletida em algo que não toma forma. Eu invento pra fugir, mas finjo que estou pra não partir de vez. Depois, no outro dia, logo pela manhã, retomou o diálogo e capturou das palavras, delas tirou muito mais do que aquilo que estava expresso nas suas primeiras impressões. Ele vê beleza na minha fome. E mata a sede, que nem sente, nos cantis da minha solidão. Num abismo comum.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Homilia

Dizem que foi José, de nome José que se apaixonou por Maria, pobre Maria. No sul da Itália. E saíram. De necessidade. Fugidos de lá. Por que na essência dos frutos que produziam existia tanta diferença que o melhor, dizem, era vir pra cá. Dizem que chegaram e inventaram essa história. Reinventada por tantos outros. E agora por mim mais uma vez. E dizem não ter fim à quantidade de vezes que foi cantada para explicar o fim. Dizem que não tiveram medo. Chegaram e foram vivendo a vida no interior de algum interior. Dizem que o melhor a fazer é escrever com lógica para que todos te entendam. Dizem que família é aquilo que forma a gente do começo ao fim. E a gente peleja o resto da vida para sair de mim. Bom, dizem que o começo foi assim. Contado assim. Como história de amor que não tem fim. As histórias que se seguiram a essa eram diferentes enfim. Dizem que o filho de José morreu com um medo sem fim. E de tantos Remédios, que sem precisão tomou por fim. Dizem que era uma doença na garganta destas que na época não podia falar o nome. De existir. Dizem. Os bares da vida serviram de palco para por um fim. Os Remédios rezavam por entre os cemitérios a algum santo que talvez lhe curassem um mal da pinga que lhe estragava a família do começo ao fim. Dizem que os homens vivem na rua. Dizem que mulher mija em pé. E recolhe sozinha. O sustento com revolver na cintura. Dizem. Tem muito ponto final no que escrevo. Dizem que é fácil escrever uma história depois que se viveu. Difícil é escrever a que vai viver. Foi um homem que disse da mãe que nem morta queria mais ver. Dizem que ela o queria ver para matar a curiosidade de saber, antes de morrer, se de fato não usava mais trato de outros modos para viver. A pinga. Dizem que mesmo morta, e isso eu vi, parecia comandante de tropa a dar ordens a todos. Dizem. Essa mulher apanhou. Do homem da mesma família da mulher que bateu. Mas dizem que ela batia porque queria que os homens não fossem ao bar. Embora, dizem, que lá é o seu lugar. Dizem que um dia ele tomou coragem, a pinga, e dizem, eu vi, tentou com punhal matar aquela mulher. Dizem que não foi à primeira vez esta que vi. Era natal. Véspera. Vez espera. Exaspera. Dizem que crianças não devem ver isso. Crescem traumatizadas, dizem. Dizem que famílias traumatizam. Dizem que este homem passou o Natal sozinho. Sentado na varanda. Dizem que uma criança vestida de menina ficou olhando para ele. Sentiu pena. Dizem. E curiosidade da solidão da solidão de um homem que queria matar alguém. E dizem que não foi preso. Sua condenação foi àquela varanda. E o olhar de medo daquela criança vestida de menina. Dizem que ele viu essa menina pouco antes de morrer. Dizem que ela levou uma flor, certa vez, para ele. Dizem que essa menina ainda existe. Dizem que é bela a primeira história desta história. Dizem que é uma história de amor. Dizem.