quarta-feira, 20 de maio de 2009

ler*

O silêncio das sereias
"Para se defender das Sereias, Ulisses tapou os ouvidos com cera e deixou que o prendessem ao mastro. A mesma coisa poderiam, naturalmente, ter feito desde sempre todos os viajantes (à excepção daqueles que já à distância se deixavam atrair pelas sereias), mas todo o mundo sabia que isso de nada serviria. O canto das sereias atravessava tudo, até a cera, e a paixão dos seduzidos teria conseguido soltar-se de mais coisas que correntes e mastros. Mas Ulisses não pensava nisso, embora talvez tivesse ouvido falar de tais coisas; confiava plenamente no bocadinho de cera e no molho de correntes e, cheio da alegria ingénua que lhe davam estes seus ínfimos meios, lançou-se ao encontro das sereias.
Acontece que as sereias têm uma arma ainda mais terrível que o canto . o seu silêncio. Na verdade nunca aconteceu, mas é perfeitamente plausível imaginar que alguém se pudesse salvar do seu canto. Do seu silêncio, certamente que não. Nada de terreno pode resistir à sensação de as ter vencido com as próprias forças, à arrogância que, na sequência disso, tudo derrubaria.
E, de facto, quando Ulisses passou, estas portentosas cantoras não cantaram. Ou porque pensaram que a este adversário só se lhe chegava pelo silêncio, ou porque, à vista da felicidade estampada na cara de Ulisses, que só pensava em cera e correntes, esqueceram de vez a cantoria.

Ulisses, no entanto . se é que assim nos podemos exprimir ., não ouviu o seu silêncio; pensou que elas cantavam, e que ele é que estava impedido de as ouvir; começou por ver nelas, de fugida, os movimentos do pescoço, a respiração funda, os olhos rasos de água, a boca semi-aberta, e pensava que tudo isto acompanhava as árias que ecoavam à sua volta. Mas depressa tudo se desvaneceu diante dos seus olhos postos na lonjura, as sereias desapareceram realmente do seu horizonte, e precisamente no momento em que delas mais próximo esteve é que nada delas pôde saber.
Elas, porém, mais belas do que nunca, espreguiçavam-se, giravam, deixavam esvoaçar os cabelos soltos ao vento, estendiam as garras para se agarrar aos rochedos, já não queriam seduzir, queriam apenas deixar-se captar pelo brilho do grande par de olhos de Ulisses, e quanto mais tempo, melhor.
Se as sereias tivessem consciência, nessa altura teriam sido destruídas; assim, lá ficaram, mas Ulisses escapou-se-lhes.
A tradição, porém, legou-nos ainda um complemento da história. Ulisses, diz-se, era tão manhoso, era uma raposa tal que nem a deusa do destino conseguia ler-lhe na alma. Talvez ele tivesse notado . mas isso já está para lá do entendimento humano . que as sereias estavam caladas, e respondeu-lhes, a elas e aos deuses, com aquele fingimento, de certo modo apenas para se defender."

Franz Kafka.
*ouvir o silêncio de alguém.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

eu não sonhei, sonhei.